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Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


terça-feira, 15 de julho de 2014

Lucia e Pepe Mujica, amor e guerrilha


Como dois guerrilheiros tupamaros, que nem sabiam os nomes recíprocos, mantiveram, por doze anos, um romance nas masmorras da ditadura uruguaia.

Por Victor Farinelli, na Rede LatinAmérica

Ana, quando voltou a ser Lucía Topolansky, e Ulpiano, quando voltou a chamar-se Pepe Mujica. Na foto, o recomeço, quando vendiam flores no mercado de Montevidéu.



Primavera de 1973. Ela não se chamava Ana, mas era assim que todos a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida numa prisão militar feminina, construída especialmente para mulheres da guerrilha tupamara, nalgum lugar desconhecido no interior do Uruguai, com uma carta na mão, que era de Emiliano, ou Ulpiano, ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro nome.



Em junho daquele ano, o fim do MLN-T (Movimento de Libertação Nacional, também conhecido como Tupamaros), foi um dos episódios que marcou o início da ditadura uruguaia, e levou centenas de jovens revolucionários à prisão, quinze deles como reféns de guerra. Ulpiano era um deles. Se os tupamaros ainda livres voltassem a atuar, ele seria fuzilado.



Um torturador pontapeia as grades da cela, enquanto ri jocosamente e relembra as últimas humilhações, de diferentes tipos, que a fez sofrer. Ana continua a ler a carta. Ele insiste: "és a nossa preferida, bebê. Vais ficar aqui milhares de anos".



A raiva fá-la apertar o papel nas suas mãos até quase rasgá-lo: "olha, daqui a doze anos eu vou sair daqui e viver a minha vida. Você viverá com o fantasma dessas perversões, atormentando até ao dia da sua morte".



Enquanto ele aumentava o volume das gargalhadas, Ana buscava algo onde escrever uma resposta. Precisava contar a sua verdade, que o seu nome não era Ana, que era filha de uma família de classe média de Pocitos, bairro nobre de Montevidéu. Tinha uma irmã gémea, tinha uma família enorme, sofria pelas saudades e pelo medo, mas não medo da morte, era o único medo que não tinha, pois bastava-lhe a certeza de sair dali e para se encontrar com ele. 

Dias depois, o seu advogado forneceu-lhe papel, caneta e a grande coincidência das suas vidas. Ele era casado com a advogada de Ulpiano. Os dois nada podiam fazer pelos dois guerrilheiros. Livrá-los da prisão no meio a uma ditadura era impensável. Mas puderam ser um casal de carteiros, trabalhando por um amor que lutava para sobreviver.



Dois prisioneiros a viver um típico amor tupamaro. O MLN surgiu em meados dos anos 60, fundado por um grupo de estudantes socialistas que queriam fazer a revolução no Uruguai. Diferente das guerrilhas urbanas de outros países, os tupamaros começaram a atuar antes de instalada a ditadura. A vida na clandestinidade impedia que houvesse relações fora da organização e não se podia saber o verdadeiro nome da pessoa amada. O amor deles nasceu quando ela se chamava Ana e ele Ulpiano, e não importava a verdade.
Amor que nasceu com um passo para fora da prisão. Ela, uma estudante de arquitetura com talento para a falsificação de documentos, fazia-lhe uma identidade falsa, e assim se conheceram. Ana tinha um namorado que também era do MLN, chamava-se Blanco Katrás, que meses depois seria capturado junto com ela. Ana só passou alguns meses na cadeia, mas Blanco seria executado pela polícia uruguaia. “Não era o primeiro namorado que eu perdia naquelas condições, e naquela altura, já tinha visto muitos outros companheiros morrerem. Não há tempo para sentir pena quando é preciso salvar a própria pele”, pensava Ana, libertada em 1972, antes de encontrar refúgio na mesma taberna em que estava escondido Ulpiano – na época, um dos homens mais procurados do país.



A caça aos tupamaros no Uruguai passou a ser mais intensa nos anos 70, com a ajuda dos Estados Unidos. Os tupamaros sequestraram e assassinaram um agente do FBI, em agosto de 1970 (Dan Mitrione, que anos antes esteve no Brasil, ensinando técnicas de tortura aos militares). Ulpiano era acusado de fazer parte dessa operação – que é narrada pelo filme “Estado de Sítio”, de Costa Gravas.



Ninguém sabe se foi aí, no ocaso do movimento tupamaro, quando viviam de taberna em taberna pelos bairros do centro velho de Montevidéu, que começou a história de amor de Ana e Ulpiano. “Eles passaram a andar juntos na época mais dura, quando nem sempre havia um teto. Às vezes, era preciso dormir em pântanos fora do perímetro urbano da cidade. Talvez a relação, digamos, física, não tenha começado nessa época, mas com certeza o carinho mútuo sim”, relata Henry Engler, um ex-tupamaro, amigo pessoal de Ulpiano.



O pouco que se sabe sobre o começo da relação é que eles se tornaram imprescindíveis um para o outro nesses últimos meses do MLN, antes do fim definitivo da organização, em junho de 1973. Ambos foram presos. Ana foi levada a uma prisão de mulheres. Ulpiano tornou-se refém, ficava numa solitária, sob ameaça de morte se algum ex-companheiro voltasse a atuar1.



Tentaram trocar correspondências entre si para sobreviver, com a ajuda dos advogados-carteiros. Ela se confessou, disse que se chamava Lucía, Lucía Topolansky, e que sonhava em sair dali e encontrá-lo. Ele respondeu com a sua própria revelação: “o meu nome é José Alberto Mujica”.



A carta-desabafo de Pepe Mujica, ex-Ulpiano, era a mais bela carta de amor de todos os tempos, segundo as companheiras de presídio de Lucía – “era toda sentimentalona, como todas as coisas do Pepe”, segundo María Elia Topolansky, irmã gémea de Lucía, também ex-tupamara. Passou por todas as mãos e fez sucesso até entre os carcereiros – “naqueles anos, cada carta que chegava era para todas”, conta Lucía, sobre a falta de ciúmes com o bilhete. 

Diz a lenda que a ternura das palavras de Mujica amoleceu as restrições que havia para correspondência entre presos, e assim eles puderam trocar mais cartas que os demais casais tupamaros separados entre prisões.

 
Essa situação durou exatamente os doze anos que Lucía deu de prazo ao seu torturador, até que o seu amor renasceu como na primeira vez, com um passo para fora da prisão. No dia 14 de março de 1985, ela e a irmã gémea saíram da cadeira e foram para a enorme casa da família – no mesmo dia em que Pepe foi libertado, depois de onze anos na solitária, “conversando com os ratos e agarrado na esperança”, segundo ele mesmo. “No dia seguinte, Lucía foi-se embora, foi morar com o Pepe, e nunca mais voltou”, conta María Elia Topolansky.



Desde então, vivem juntos numa quinta de um bairro de classe baixa, na periferia de Montevidéu. Começaram por cultivar flores e vendê-las no mercado municipal, mas sem esquecer os ideais políticos. Pepe candidatou-se e foi eleito deputado em 1995. Em 2000, passou a ser senador, e Lucía deputada. Em 2005, ela foi eleita senadora, e nesse mesmo momento, trinta anos depois do começo da relação, vinte anos depois de começarem a viver juntos, decidiram formalizar o matrimónio. Cinco anos antes de Pepe assumir como presidente do Uruguai.

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A melhor forma de mergulhar na história de amor de Pepe Mujica e Lucía Topolansky, e também na história dos Tupamaros, é mergulhar na história dela. Por isso os jornalistas e historiadores uruguaios Nelson Caula Alberto Silva escreveram o livro “Ana, La Guerrillera”, que traz detalhes de tudo o que se contou neste tópico e muito mais episódios sobre a criação do MLN, a vida na clandestinidade e a disputa política que levou o Uruguai à sua mais recente ditadura.



Publicado originalmente pela Rede LatinAmérica.



Reproduzido de Outras Palavras



1Depois do golpe de Estado de 27 de junho de 1973, os militares mantiveram na prisão os dirigentes tupamaros Raúl Sendic, Eleuterio Fernández Huidobro, Mauricio Rosencof, José Mujica, Adolfo Wasem, Julio Marenales, Henry Engler, Jorge Manera e Jorge Zabalza, na qualidade de reféns e como troféus de guerra durante todo o tempo que durou a ditadura, quer dizer, até 1985. Os dirigentes tupamaros ficaram reclusos em condições sub-humanas de contínua tortura, em quase total incomunicação (comprovadas posteriormente por organismos como a Cruz Vermelha Internacional) e sob a ameaça de serem executados se houvesse alguma ação do MLN-T, qualquer que fosse.