"A LUTA DE UM POVO, UM POVO EM LUTA!"

Agência de Notícias Nova Colômbia (em espanhol)

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A violência do Governo Colombiano não soluciona os problemas do Povo, especialmente os problemas dos camponeses.

Pelo contrário, os agrava.


terça-feira, 19 de agosto de 2008

Os assassinos que faltavam no Ayití: o exército colombiano de “férias” no Caribe

por José Gutierrez Dantón / Reproduzido de: Anarkismo.net

Como se o povo ayisien[1] já não tivesse sofrido bastante com os furacões da última temporada, com a fome causada por anos de imposição da ortodoxia neoliberal e com a ocupação militar que sofre desde 2004 por parte da ONU (a chamada MINUSTAH), agora soubemos que, para completar ainda mais a desgraça, que o exército colombiano está pensando seriamente em fazer suas malas e tomar o rumo de Porto Príncipe[2]. A Colômbia, diga-se de passagem, não é absolutamente alheia à MINUSTAH, como é de se supor devido ao absoluto silêncio desta sobre esta ocupação de duvidosa natureza humanitária. Na verdade, a Colômbia já tem policiais em Ayití desde o começo da missão em junho de 2004[3], mas até o momento não tem enviado tropas. Essa é a novidade. As tropas colombianas são, na verdade, os únicos makoutes que faltavam na paródia de missão “humanitária” que é a MINUSTAH, da qual participam a soldadesca chilena, brasileira, argentina, jordana, nepalesa, marroquino, peruana, nigeriana, paquistanesa, e a de outros tantos países com exércitos igualmente “respeitosos” dos direitos humanos - como o do Sri Lanka, por exemplo...

E digo paródia porque é muito curiosa uma “missão de paz” que, em pouco mais de um ano, conseguiu assassinar 10 mil ayisien e tem vários massacres em seu currículo. Na verdade, a ONU e sua missão supostamente humanitária serviram de fachada para um Golpe de Estado sui generis, já que ocorreu em um país sem exército. Lembremos que em 1995 o presidente Aristide tinha dissolvido o exército, pois, em sua história, este somente se dedicara a fazer golpes de Estado, mas jamais impedira uma só intervenção estrangeira[4]. Os fatos que levaram a este Golpe sui generis ocorreram assim: no começo de 2004 um grupo armado de ex-militares e policiais a serviço das ditaduras de Duvalier e Cedras, financiado pela CIA e treinado na República Dominicana, começa uma série de ataques no norte de Ayití, enquanto grupos financiados pelos EUA implementavam um plano de desestabilização, semelhante ao usado no Chile na época de Allende, com o objetivo de derrubar o regime populista de Aristide que não agradava Washington (e ao qual já tinham derrubado em 1991). Os pistoleiros assalariados da CIA conseguiram derrubar Aristide com o apoio de um comando dos EUA que seqüestrou Aristide e o exilou na República da África Central, mas não podiam participar do governo, pelo qual, após uma breve ocupação organizada pelos EUA, França, Canadá e Chile, uma missão da ONU se encarregou de garantir segurança ao regime pós-golpe de uma maneira em nada diferente daquela em que um exército exerce o poder político numa ditadura militar. Com o objetivo de manter a ditadura dos 3% mais ricos em um país sem exército, não restou alternativa aos nostálgico de Duvalier senão recorrer a uma ocupação estrangeira[5].

Melhor seria que a face pública desta ocupação não fosse assumida pelos EUA, muito maculado por suas aventuras no Oriente Médio, nem à França, com um passado colonial muito oneroso. Foi então que saltaram os 'chapolins colorados' da América Do Sul, demonstrando que quando o Tio Sam não pode cumprir totalmente a sua tarefa de controle do hemisfério, suas marionetes locais podem fazê-lo. Com isso, criaram o terrível precedente da ocupação de cunho imperialista operada por países latino-americanos, isto é, ocupações “terceirizadas”. Claro, cada um obtém o seu quinhão nessa da ocupação, pois Ayití há muito tempo não é mais que carniça para qualquer abutre esfomeado.

Vale destacar que todos os exércitos que participam desta ocupação têm um histórico grave de violações de direitos humanos, o que, na verdade, não deveria nos surpreender diante dos resultados desta missão. Visto deste modo o exército colombiano não estará, como diz uma expressão criolla, como um “porco na missa”, isto é, fora do seu ambiente, mas entraria como sócio majoritário do “seleto” clube da MINUSTAH. Sabemos que o Exército colombiano é o grande responsável pelo drama do deslocamento na Colômbia, que força 313 mil colombianos para fora dos seus lares anualmente, que envenenam povoações camponesas inteiras com os programas de fumigação de coca (mesmo que o cultivo tenha crescido 27% no último período segundo relatórios da ONU), que seus soldados recebem dias livres e outros benefícios por “guerrilheiro morto” (prática que redundou nos chamados “falsos positivos”, isto é, o assassinato de camponeses que nada têm a ver com o conflito e que são assassinados e apresentados como “guerrilheiros mortos em combate” –dos quais cerca de 1.000 morreram no governo de Uribe), que juntamente com os paramilitares são responsáveis pela morte de pelo menos 70 mil membros de organizações populares desde o começo dos anos 90 e pelo desaparecimento de aproximadamente 30 mil no mesmo período (uma recente entrevista do paramilitar desmobilizado conhecido como HH joga alguma luz sobre este horror[6]) que, ao proibir a passagem de alimentos a certos setores com o fim de causar fome nas guerrilhas, o que fazem é matar de fome a comunidades inteiras, e que, por fim, que onde chega um batalhão começam as violações de mulheres e menores de idade. Vemos, então, que ao Exército colombiano não faltam méritos para integrar a MINUSTAH.

Mas não somente o exército colombiano não se acha fora do lugar entre os gorilas que têm como pares na MINUSTAH: o regime de Uribe na Colômbia tem uma grande semelhança com o regime de Duvalier (salva-se a cor da pele). Ambos utilizaram o suborno e o terror de seus partidários para ganhar as eleições; ambos modificaram a legislação a seu bel-prazer para exercer um caudilhismo autoritário e voraz; ambos recorreram à ajuda de forças ilegais para fazer o trabalho sujo (makoutes em Ayití, paramilitares na Colômbia); ambos contaram com a sacrossanta vênia de Washington e construíram uma ideologia de segurança nacional ante a ameaça latente dos vizinhos “comunistas” e seus aliados “apátridas” locais; e sobretudo, ambos utilizaram e manipularam uma ideologia patriotista, nacionalista e beata com o fim de apresentar-se como a encarnação do bem, dos valores eternos da pátria e da graça divina.

Posso imaginar o ministro Santos e Uribe tomando um chá com os Duvalier, com Papa Doc e com Baby Doc, enquanto falam de narco-terrorismo, de comunismo, de confabulações estrangeiras, de apátridas e das virtudes de rezar o Pai Nosso dez vezes por dia. Papa Doc, ditador de 1957 até 1971, produziu um “catecismo” de seu regime cheio de imagens religiosas, bandeiras e odes a si mesmo, uma das quais rezava o seguinte:

“Doc nosso que está no Palácio Nacional eterno, santificado seja Teu nome pelas gerações presentes e futuras. Faça-se a tua vontade, assim em Porto Príncipe como nas províncias. Venha a nós um novo Haiti e nunca perdoes as maldades dos antipatriotas que cospem diariamente em nosso país; deixa-lhes cair em tentação e sob o peso de seu rancor, não lhes livres de nenhum mal...”[7]

Amém. É só mudar as citações de Doc por “Uribe”, o Palácio Nacional pela Casa de Nariño e a oração vira a cópia de um artigo dos colunistas lambe-botas do uribismo. Poderia até ser um editorial do El Tiempo ou do Caracol.

Portanto, rapazes, ao encomendar suas malas e passagens para o Caribe, as tropas colombianas tornam-se “turistas com fuzis”, como sabiamente chama o povo ayisien aos capacetes azuis de MINUSTAH. Aí vai a Colômbia junto atrás dos EUA, como Robin atrás de Batman, auxiliando o seu amo na missão de Ayití (e também do Afeganistão, aliás). Que não fique nenhuma dúvida do compromisso que a Colômbia tem de servir aos interesses superiores de seus amos em Washington nem da sua hostilidade para tudo o que cheire a causas populares. Que ninguém suspeite que o governo do presidente Uribe não está pronto para satisfazer aos caprichos de seu patrão e auxiliá-lo na sua cruzada global de dominação. É péssimo: todos ganham algo com o drama do Ayití: assim como o Brasil está utilizando esta missão como moeda de troca para um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU, a Colômbia parecesse utilizar sua participação na ocupação como uma forma de ganhar créditos para que o Congresso dos EUA decida, por fim, assinar o NAFTA. Como se vê, todos têm algo a ganhar. Todos, menos os ayisien.

Então, presidente Uribe, não se flagre tacanho ou preguiçoso: não mande somente as tropas. Mande também a contraparte necessária dela: mande seus “Rastrojos”, seus “Águilas Negras”, seus “Paisas”, seus “Nueva Generación”, seus “Jorge 40”, seus "Mancusos" etc. Mande todos os seus paramilitares para que complementem o trabalho, e na base da motosserra ensinem a todos esses “pretos de merda” em Ayití que porcaria é a democracia, tal qual eles têm ensinado por décadas a esses outros “pretos de merda” que vivem em Chocó e na Costa Caribe da Colômbia. Segurança Democrática também no Ayití! Além disso, não se pode ficar esta tarefa civilizatória pela metade, já que, depois dos massacres, alguém terá que sumir com os presuntos, ou não?

Também mande seus amigos do Instituto Gallup ensinarem a MINUSTAH a manipular pesquisas, para ver se dessa forma conseguem convencer o mundo de que a MINUSTAH é apoiada por 84% dos ayisien, que a Preval (Presidente Velando as Eleições Vigiadas por Meio de Ocupação) é defendida por 91% dos cidadãos e que o ex-presidente Aristide não é mas um vulgar “narcotraficante-terrorista” sem idéias políticas e somente interessado em Ayití como uma rota para o tráfico de cocaína que, via Venezuela, passa para o mundo civilizado.

Enquanto isso o povo ayisien, silenciosamente, seguirá na árdua tarefa de construir o seu destino apesar tudo: os furacões, a fome, o neoliberalismo e a ocupação. E sim, saberá seguir construindo seu destino apesar dos makoutes colombianos. Ayibobo![8].

José Antonio Gutiérrez D

11 de Agosto de 2008



NOTAS

[1] Prefiro sempre utilizar Ayití para Haiti e ayisien para haitiano. Essa é a maneira original de escrevê-lo e dizê-lo na língua nativa de Ayití, o kréyol ayisienM.

[2] http://www.elespectador.com/impreso/politica/articuloim...e=0,0

[3] http://www.un.org/depts/dpko/missions/minustah/facts.html

[4] O artigo citado do jornal colombiano El Espectador, http://www.elespectador.com/impreso/politica/articuloim...e=0,0, é uma boa amostra do quanto é frouxo e desacreditado o jornalismo colombiano ao dizer que uma das tarefas da MINUSTAH é “apoiar ao exército haitiano”. Desconhecem um dado tão básico, como o de que o exército haitiano não existe! Disso já dá pra desconfiar do resto do material jornalístico que não pode ser muito “profissional”. O que mais se pode esperar desta imprensa lambe-botas?

[5] Escrevi vários artigos de análise da crise haitiana. Entre eles pode analisar sobre a crise mesma: “Ayití, uma cicatriz no rosto da América” - http://www.anarkismo.net/article/1063 - e “Ayití, entre a liberação e a ocupação” - http://www.anarkismo.net/article/4651. Sobre os soldados chilenos e sua natureza ditatorial foi publicado no Haiti Tribune o artigo “Macoutes et opportunistes du Chili exportés no Haiti” http://www.anarkismo.net/article/2161

[6] http://www.elespectador.com/impreso/judicial/articuloim...e=0,1

[7] Cit. em “The Haiti Files – Decoding the Crises” ed. James Ridgeway, Essential Books, Azul Editions, 1994, p.20.

[8] Equivalente a “Amém!” nos rituais voduístas.